Uma Conversa com Wilson Bueno
Fábula escrita na zona de sombra, na fronteira entre o vivido e o sonhado, a obra de Wilson Bueno é uma vasta mitologia que nos seduz com seus jogos de jogar. Alegoria, caldo tropical que mescla idiomas e culturas, o erudito e o popular, a ficção desse autor insólito configura um barroco mestiço. Porém, como toda grande literatura, transcende a arquitetura verbal, em busca da compreensão da aventura humana. Wilson Bueno, que nasceu em 1949, na cidade de Jaguapitã, no interior do Paraná, publicou, entre outros, os seguintes livros: Bolero’s Bar (1986), Manual de Zoofilia (1991), Mar Paraguayo (1992), Cristal (1995), Jardim Zoológico (1999), Meu Tio Roseno, a Cavalo (2000), Amar-te a ti nem sei se com carícias (2004), Cachorros do céu (2005) e A copista de Kafka (2007), todos de ficção, além dos volumes de poesia: Pequeno Tratado de Brinquedos (1996) e Pincel de Kyoto (2008). O autor editou por oito anos o lendário jornal literário Nicolau, um marco na história do jornalismo cultural brasileiro.
Você nasceu em Jaguapitã, cidade que fica a
Wilson Bueno — Sem dúvida. As histórias inventadas (ou reinventadas...) por tias, avós e sobretudo por minha mãe, uma contadora de história por excelência, estão presentes em minha escritura e, por extensão, em todos os meus livros, mesmo naqueles onde radicalizei dentro de uma proposta estética, digamos assim. Tenho para mim que o imaginário será sempre o resultado feliz desta mescla de vivências e mitologia pessoal. Estamos sempre contando histórias dos outros, ainda que estas sejam histórias profundamente nossas e que só não são dos outros porque as descobrimos primeiro...
A sua prosa de ficção utiliza recursos do texto poético, como os jogos sonoros, imagens de alto impacto e invenções de linguagem, resultando em esmeraldas vivas. Qual é a fronteira entre prosa e poesia?
Bueno — Tudo é a arte da poética, a meu ver. Escrevo assim, sempre escrevi assim. Não sei escrever sem ser íntimo. A prosa retém a poesia e é por ela gerada, num processo que aspira, antes de tudo, a ser livre. Acho que a literatura pode ser o máximo de liberdade que desfrutamos sobre a Terra — e eu quero amar o amor da escrita, o gozo epifânico de sua irradiação. Eu não consigo escrever dividido, amarrado pelo cânone e pela norma. Ora, se aquilo ali é o meu mais exasperado espaço de liberdade, é nele que devo me pôr a vigir. E tudo é a poesia das coisas. Viver já é um ato poético em si, para lembrar Hölderlin. E, dos atos poéticos, o que, convenhamos, requer de nós mais coragem, bravura, heroísmo – chame do que se quiser chamar ao desassombro. Indispensável para que sobrevivamos à perplexidade de nos flagrarmos vivos.
Em várias de suas novelas, há citações da língua e do imaginário guarani, não raro mesclados ou transfigurados por sua própria criação fabulatória. Quando começou o seu interesse pelas culturas dos índios? Você é um estudioso do folclore das nações indígenas?
Bueno — Não, não me considero um expert indigenista, digamos assim. Minha curiosidade com relação ao tema às vezes penso que seja anterior a mim mesmo... Nasci no sertão, aquele tempo, — e nem faz tanto tempo assim —, que o Paraná tinha sertão — a floresta virgem, a fauna nativa quase intocada. Sou bisneto de índia guarani com alemão. Imagina a mistura... Minha bisavó, (mãe de minha avó materna, esta uma bugra de olhos azuis e que comia com as mãos), foi caçada a laço no interior paulista por um germano de fuzilantes olhos azuis. Faço uma pequena homenagem a este meu bisavô
Como é o seu processo criativo? Você escreve todos os dias? Elabora o enredo antes de escrever, ou desenvolve a narrativa durante o ato da escritura? Como surgem os personagens? A linguagem molda a elaboração fabulatória, ou as palavras seguem o ritmo da história?
Bueno — Curioso, penso que não escrevo nunca... Estou o tempo inteiro me culpando e me cobrando, mas estou ali escrevendo, escrevendo, escrevendo... São caderninhos, cadernões, agendas, folhas soltas, guardanapos.... E quando não estou literalmente grafando estou pensando no que grafar, como grafar, de que modo grafar. E entre uma coisa e outra estou sempre numa festa constante com as poucas pessoas que me são íntimas, esquecido de que exista a Literatura, e me culpando de que não esteja escrevendo... Sou um preguiçoso olímpico, desses que mourejam noite e dia... Mas acho que é porque encontrei um modo mais leve de exercer o ofício — vou escrevendo sem grandes pretensões a não ser a de fazer coisas que me dêem a satisfação plena de que eu esteja, quem sabe, capturando o improvável...
Jorge Luis Borges disse certa vez que a literatura vem da literatura, do infinito oceano da linguagem. Você concorda com a sentença do viejo brujo? Em teu caso, quais os livros e autores que marcaram a tua formação como escritor?
Bueno — Concordo em gênero, número e grau com Borges para quem a literatura só tinha sentido se embrujada. E era ele quem nos indicava que abandonássemos, até mesmo de vez, em definitivo, os livros que não nos fossem prazerosos, isto é, encantados. São muitas as influências mais que acachapantes em minha vida, até aqui, porque sigo me apaixonando perdidamente por novos velhíssimos escritores (Ovídio, nos últimos meses...). E entre elas, eu citarei, assim a esmo, sem nenhuma ordem, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Kafka, Machado de Assis, Borges, Joyce, Cortázar, Cortázar e Cortázar e Hemingway, Gide, Shakespeare, e Calvino e Calvino e Calvino, nosso mestre. Além de toda a “mala”, pérfida e assombrosa literatura argentina – de Madariaga a Lamborghini, de Cesar Aira a Néstor Perlongher. E os contemporâneos brasileiros — Noll, Bernardo Carvalho, Nassar, Hatoum — príncipes da prosa brasileira...
Meu Tio Roseno a Cavalo, que você acaba de publicar, é uma novela ambientada na região fronteiriça entre Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai, onde ocorreram lutas entre tropas de jagunços, que você chama de Guerra do Paranavaí. Fale um pouco sobre essa obra.
Bueno — Acho sempre limitador falar de um livro que já está escrito, e publicado. Tudo o que pretendi dizer já está lá, já está dito. Tudo o que eu lhe disser agora será redundância, variações sobre o mesmo tema. Também o que pretendi dizer se eu não alcancei dizê-lo, debite à dificuldade então do livro “comunicar” o pretendido. O que posso dizer sobre Tio Roseno, e talvez isto acrescente alguma coisa é que, de todos os meus livros, foi o mais pensado, o mais projetado. Até mapas eu tracei para demarcar o périplo de nosso tio humilde do sopé da Amambaí às barrancas do Paranapanema. E talvez dizer ainda, também, que com ele expressei o desejo de ir à raiz molecular da narrativa que é a fábula. É um livro claro, fácil, límpido. Qualquer colegial há de lhe decifrar a tessitura, ainda que ele guarde chaves, “ciladas”, “citações” que só os leitores obsessivos consigam alcançar. Pus de um tudo ali — de mitologia grega a ponto de candomblé, de modinha caipira a adivinha cabocla, de Verlaine a Baudelaire, todos os Bilacs e toda “la mala literatura” que pude pôr, esta na qual os argentinos, nossos vizinhos, são prodigiosos...
Bueno — É bem isso. Digamos que o Mar intenta espelhar a democracia e a proliferação das linguagens. Uma contestação em si aos rigores clássicos, às camisas de força de um fazer literário que se impõe a nós, desde muito antes de nós mesmos. Com o Mar eu pretendi romper com tudo isto — inclusive com a angústia da influência, misturando tudo numa mesma e assumida “sopa” literária, Joyce e Puig, José de Alencar e Machado, Neruda e Octávio Paz. É, penso, uma declaração de amor à literatura, ao gosto de fazê-la. Aliás, acho, e somos sempre os piores juízes de nós mesmos, que todos os meus livros, antes de tudo, expressam ou procuram expressar isto – a alegria (que não dispensa a angústia...) de fazer literatura, de escavar a bruta pedra atrás da joia mais preciosa.
Esta novela é um monólogo que mistura elementos eruditos e populares, como a canção de cabaré, o melodrama e o fluxo de consciência joyceano. A fusão é uma tentativa de superar, dentro dos limites do discurso textual, os limites entre os repertórios culturais?
Bueno - Creio que sim. A resposta à pergunta anterior penso que já é uma tentativa de dar conta da questão. A multiplicidade de discursos e de repertórios no Mar é, a meu ver, o exercício pleno desta “democracia” de que falei te respondendo à outra pergunta, mas que vale, sim, ser repetido. É a vivência do diverso no seio mesmo da diversidade, a errância (lato sensu e metaforicamente), a indeterminação geográfica (expressa até mesmo no título... O Paraguai, sabemos, não tem mar... O “mar” do Paraguai é o balneário de Guaratuba, no Paraná, onde se passa a história... História?...), a ambiguidade, o mix contaminante e contaminador das línguas e também a sua prosa-em-abismo é que fazem do Mar, de todos os meus livros, seguramente o mais amado e estudado. E estilhaça, sim, com as molduras – se não erro ao exercer a vaidade de falar de mim mesmo...
O que representa Cristal, dentro do conjunto de tua obra? Fale um pouco a respeito deste livro.
Bueno — Curioso, o livro Cristal tem escassa fortuna crítica. Entre as poucas reflexões, que eu me lembre, há uma, consagradora e muito lúcida do Jairo Arco e Flecha, e uma outra, brilhante, de Jamil Snege, mas é só. É, contudo, acredite, um livro que circula, por exemplo, entre a comunidade hispânica de Nova Iorque, em cópias xerox destrambelhadas... Aquela gente toda tentando vencer o cipoal de nossa língua para entender a história da Velha e de seu “anjo”, Ananias, travestido de menina por cinco anos jesus infindos, em razão de uma promessa religiosa...É um livro triste, eu diria. Um livro profundamente triste e quase desesperado. Nem o patético o salva posto que não gera aquela comicidade irrefreável que o dramalhão provoca, por exemplo, no Mar. Neste sentido é um livro que curiosamente bate de frente com Mar Paraguayo. Não tem dramalhão, só tem “drama” e ao se circunscrever ao “drama” ganha em “classe”, digamos, mas perde fragorosamente
O Manual de Zoofilia é uma coleção de relatos, ou poemas em prosa, notáveis pela riqueza metafórica, construção melódica e ruptura sintática. Aqui, você criou uma teratologia onde os animais são figuras de um discurso sobre a paixão erótica. Como surgiu essa obra?
Bueno — Eu sempre desejei fundir, num mesmo espaço de reflexão, a “grafia” animal e a paixão erótica humana. Em Manual de Zoofilia fica evidente o quanto de irracionalidade comporta nosso discurso amoroso. E para dar viva voz à esta i-racionalidade fui buscar nos bichos encantos e sordidezas, grandezas e patifarias para transubstanciá-los, usemos este verbo pedante, a partir do tesão, da cópula, da paixão viciosa e viciada em que, humanos, nos amamos, muitas vezes, do mais escuro ódio.
Bueno — Fabular é ir além da história, da história com H, demarcada e demarcante, ciosa de suas datas, espacialidades, factual e militante. É na fábula que a epifania literária se consome e se completa. Fabulosos e fabulantes — de Shakespeare (Sonho de Uma Noite de Verão) a Ítalo Calvino (O Barão nas Árvores), para citar aí as fábulas de minha mais estreita paixão, a fábula dá a medida embrujada da literatura. Há uma inocência primeira na fábula e junto com ela o encanto original da velha ars literaria...
Bueno — Não pensei direito nisto ainda... Eu diria que Os Chuvosos se destina, ao menos este é o meu desejo, a leitores dos 0 aos 100. E tem sido esta a recepção dos escassérrimos 50 exemplares “fabricados”, um a um, à mão, como se fossem gravuras. Gente de todas as idades fica encantada com este livro. Mas ali tem o toque mágico da Jussara Salazar que reinventa o texto e faz dele no papel uma literal fulgurância.
Mudando um pouco de assunto, você criou e foi o editor do jornal literário Nicolau, que marcou época e ganhou vários prêmios no Brasil e no exterior. Fale um pouco sobre essa experiência.
Bueno — O Nicolau é uma longa, longuíssima história. Eu costumava dizer que eu e minha mínima equipe (Fernando Karl, Joba Tridente, Angelo Zorek) integrávamos o último bastião romântico do jornalismo brasileiro. Fazíamos o jornal à mão e conseguimos reunir em torno deste que foi o último dos moicanos, a viva inteligência brasileira. De Millôr a Haroldo de Campos, de Adélia Prado a Hilda Hilst, Nicolau foi um momento bonito da inteligência brasileira. Como classificou o Jornal do Brasil, numa então memorável matéria de página inteira, aquilo ali era o mais autêntico “carnaval de ideias” de que possuía o País naquele dado momento. Ganhamos todos os prêmios, ousamos, brigamos, polemizamos, esperneamos e de batalha em batalha conseguimos emplacar oito anos de ininterrupta circulação nacional. Dia desses, a demonstração de que a batalha valeu a pena – recebi a visita de um menino de vinte anos, do Rio Grande do Sul, estudante de jornalismo, que estava fazendo uma monografia sobre Nicolau para apresentar
Como está a literatura brasileira, hoje? Há novos autores interessantes?
Bueno — A literatura brasileira sempre foi e será uma literatura muito interessante. Um país que produziu, para ficar em dois nomes, Machado de Assis e Guimarães Rosa, só pode ser dono de uma grande literatura. Há muita gente trabalhando a sério no país, pensando grande, mas há, como sempre, a ratatuia da política literária que em vez de somar, subtrai, torce contra, sem ética nem estética. E aí a ratatuia não tem tempo de fazer literatura e só faz ratoagens...
No Pequeno Tratado de Brinquedos, você reuniu poemas que dialogam com a forma do tanka, o poema japonês de 5 versos, que é a gênese do haicai. Você pensa em publicar outros volumes de poesia?
Bueno — Não. Não tenho a menor intenção de publicar um novo livro de poesia estrito senso. O Pequeno Tratado eu o considero a minha suma e a minha súmula. Desejei homenagear uma das nascentes da poesia — o Oriente, e foi o livro sobre o qual mais longo tempo trabalhei — um ano e meio para arrancar 58 tankas, apenas, de cinco versos cada um. E só Deus sabe com que sacrifício. Tenho ainda, inéditos, mais 25 tankas, num livrinho chamado Pincel de Kyoto, sobras do Pequeno Tratado. Quem sabe, um dia, eu me incline a editá-lo. Mas repito — livro de poesia eu não penso para tão cedo.
O poeta cubano José Kozer, em parceria com Roberto Echavarren e Jacobo Sefamí, editou uma antologia de autores latino-americanos, chamada Medusário, que incluiu escritores brasileiros como você e Haroldo de Campos. Em sua opinião, não está na hora de haver maior intercâmbio entre as literaturas brasileira e latino-americana?
Bueno — A inclusão de 18 páginas de Mar Paraguayo no (rigoroso) Medusário, editado pela Fondo de Cultura Económica, na Cidade do México, e distribuído para todos os países de língua hispânica, foi uma coisa que me honrou muito e que continua me honrando. De brasileiros, além deste vosso escriba, só Paulo Leminski e Haroldo de Campos. O intercâmbio, claro, deveria ser maior, bem maior – de parte a parte. Já foi maior o isolamento, mas aos poucos acho que isto está melhorando, sobretudo depois da Internet e de iniciativas louváveis de reunião de escritores como as empreendidas por Luis Bravo, no Uruguai e, mais recentemente, Jorge Montesinos e Douglas Diegues, em Assunción, no Paraguai, sem deixar de citar Reynaldo Jiménez com aquela brilhante e generosa edição da argentina tsé-tsé dedicada a 30 poetas brasileiros.
(Entrevista publicada em 2000
no Suplemento Literário de Minas Gerais.)
claudio daniel / são paulo
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